Entrevista | José Alexandre Ferreira

JAF

Investigador do Laboratório Associado RISE e do Centro de Investigação do IPO Porto (CI-IPOP)
Colaborador do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS-UP)

José Alexandre Ferreira é investigador do Laboratório Associado RISE (CI-IPOP@RISE/ICBAS-UP), tendo realizado grande parte do seu percurso académico na Universidade de Aveiro.

Desde cedo sentiu necessidade de “compreender o mundo ao nível molecular” e, por isso, após se ter licenciado em Química pela Universidade de Aveiro, em 2002, prosseguiu, para o mestrado em Bioquímica e Química dos Alimentos. Após terminar este ciclo de estudos, o investigador doutorou-se em Bioquímica, tendo-se especializado na caracterização estrutural de glicanos complexos de diferentes matrizes biologicas (plantas, bactérias, parasitas, humanos), glicómica e glicoproteómica.

Colabora, desde 2012, com o Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia do Porto (CI-IPOP@RISE), entidade onde, enquanto investigador do Grupo de Patologia e Terapêutica Experimental, se debruça sobre o desenvolvimento de novas soluções para o combate ao cancro.

Para o investigador, o Laboratório Associado RISE é uma “oportunidade de, de forma mais estruturada, transformar conhecimento científico em soluções com impacto real na saúde”.

Na investigação, o especialista centra-se na identificação de padrões específicos de glicosilação de proteínas em células tumorais, com o objetivo de desenvolver novas estratégias em oncologia de precisão e soluções terapêuticas inovadoras.

Começou o seu percurso académico ao ingressar na licenciatura em Química, na Universidade de Aveiro. O que o motivou a escolher esta área?

Escolhi Química porque sempre me fascinou a ideia de compreender o mundo ao nível molecular, perceber como as moléculas interagem entre si para formar tudo o que nos rodeia e, sobretudo, os sistemas biológicos. A bioquímica acabou por se destacar pela forma como articula a química com os processos que sustentam a vida. Foi aí que comecei a perceber que havia, nesse conhecimento, um potencial transformador, uma possibilidade de agir sobre a doença, e isso tem sido o que tenho procurado fazer ao longo do meu percurso académico e profissional.

A Universidade de Aveiro foi uma escolha natural, não só pela qualidade científica reconhecida, mas também pelo ambiente inspirador. O campus junto à ria, em plena harmonia com a natureza, e a cultura colaborativa foram fatores decisivos. Além disso, na altura em que entrei, o corpo docente era marcadamente jovem, dinâmico e muito próximo dos estudantes, algo que, felizmente, ainda hoje se sente naquela academia. Essa proximidade com os professores e investigadores foi também algo que me marcou positivamente desde o início.

Durante o seu percurso, como surgiu o interesse pela investigação centrada no cancro?

Foi uma progressão quase natural. À medida que me aproximei da bioquímica e da biotecnologia, fui percebendo o impacto real que a investigação molecular pode ter em doenças complexas, como o cancro. O meu interesse foi-se consolidando por etapas. No final da licenciatura, muitos colegas estavam fascinados com genes e proteínas, o que fazia todo o sentido na altura, dado o auge da genómica. Eu, talvez numa tentativa de seguir um caminho menos explorado, comecei a olhar com mais atenção para os açúcares, dos mais simples, como a glucose, aos polissacarídeos de estruturas mais complexas. Esse interesse levou-me ao doutoramento, centrado no estudo dos polissacarídeos produzidos pela Helicobacter pylori, uma bactéria associada a infeções gástricas persistentes e, em última análise, ao cancro gástrico.

O objetivo era desenvolver glicovacinas que pudessem prevenir essa evolução. Nesse processo, fui-me apercebendo das semelhanças entre o glicocódigo da bactéria e o humano, o que me abriu a porta para a glicobiologia e imunologia do cancro. Com o tempo, compreendi que os açúcares funcionam como códigos celulares. Transportam informação sobre o estado funcional da célula e revelam sinais de alerta, como evasão imunitária, inflamação crónica ou transformação tumoral. Essa possibilidade de usar esses sinais para entender melhor a doença, apoiar decisões clínicas e atingir de forma mais precisa as células tumorais foi o que mais me motivou. Assim, já lá vão mais de 20 anos a estudar açúcares em sistemas biológicos, e sinto que esta construção me tem aproximado de forma consistente do meu objetivo de contribuir para uma melhor gestão do doente oncológico.

Atualmente, é cofundador da GlycoMatters. Quais são os principais desafios de liderar uma start-up dedicada à oncologia de precisão?

Criámos a GlycoMatters porque sentimos que seria a forma mais eficaz de aproximar o intenso conhecimento do doente que estávamos a gerar no IPO Porto, tornando-o mais tangível e mais útil, mas também porque queríamos acompanhar o percurso da inovação, além da proteção de propriedade intelectual e consequente publicação científica. Queríamos estar presentes nas fases pré-clínicas, contribuir para a valorização das tecnologias e torná-las atrativas do ponto de vista translacional e, até, de investimento. Esse é, aliás, um dos principais desafios: transformar ciência complexa, como a glicobiologia aplicada ao cancro, em propostas claras, robustas e com potencial real de aplicação. Isso implica lidar com a incerteza, tomar decisões estratégicas com alguma celeridade e posicionamento, e aprender a comunicar com públicos muito diferentes, desde médicos a investidores, passando por parceiros regulatórios.

Os desafios são muitos, e nem todos estão dentro da start-up. Um deles é navegar pelos processos de licenciamento e transferência de tecnologia em ecossistemas que ainda estão a encontrar o seu equilíbrio. Nem sempre é fácil alinhar ritmos, interesses e expetativas entre a investigação pública e a lógica empresarial, sobretudo quando a inovação é altamente especializada. Junta-se a dificuldade em captar financiamento nos estágios mais imaturos de maturação tecnológica. É precisamente aí, onde o apoio é mais crítico e o risco mais elevado, que tudo se torna menos compatível com os modelos clássicos de avaliação de mérito, impacto ou retorno. Mesmo assim, o caminho tem sido entusiasmante. A GlycoMatters tem-nos permitido pensar ciência, mas também tudo o que é preciso para que essa ciência se torne tangível para os que mais dela precisam.

Como surgiu a oportunidade de integrar o Centro de Investigação do IPO Porto?

O IPO Porto é uma referência nacional e internacional em oncologia, e a possibilidade de integrar uma equipa multidisciplinar, com acesso direto à realidade clínica, foi decisiva para a minha escolha. O convite surgiu num momento em que estava no Centro de Espectrometria de Massa da Universidade de Aveiro e em que a minha investigação já se encontrava bastante orientada para aplicações biomédicas. Foi a oportunidade que procurava para aproximar a investigação básica que desenvolvia, em contexto académico, do doente em contexto hospitalar. Isto aconteceu em 2011. Na altura, o Professor Lúcio Lara Santos tinha acabado de assumir a coordenação do Grupo de Patologia e Terapêutica Experimental do Centro de Investigação do IPO Porto e apostou numa visão integradora, dando espaço e liberdade para novas abordagens. Acreditou, deu margem e responsabilidade, o que fez toda a diferença.

Esse ambiente de confiança e exigência foi fundamental para que a colaboração se tornasse mais do que pontual e ganhasse continuidade e profundidade. Desde então, tenho contribuído com uma perspetiva mais molecular e orientada para a translação, em particular na área da glicobiologia e no desenvolvimento de ferramentas para imunoterapia e diagnóstico. Ter um laboratório dentro de um hospital oncológico tem sido essencial para testar ideias num contexto real, perceber melhor as necessidades clínicas e desenvolver soluções com aplicabilidade concreta. Nos últimos anos, tenho testemunhado um crescimento notável do IPO Porto, em especial no seu Centro de Investigação, que foi recentemente classificado como Excelente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Tem havido um investimento substancial em novas infraestruturas, com destaque para as áreas da proteómica, de outras plataformas tecnológicas e da ciência de dados, a par de um aumento da participação em projetos internacionais e de uma aposta crescente e sustentada em ensaios clínicos e em medicina de precisão. Essa evolução tem contribuído de forma clara para a melhoria dos cuidados prestados aos doentes e reforçado o papel do centro como polo de inovação em oncologia. O cruzamento entre investigação fundamental, clínica e tecnológica cria um terreno fértil para quem quer transformar ciência em impacto. É exatamente isso que tenho procurado fazer.

Faz parte da equipa que está a desenvolver uma vacina baseada em açúcares presentes nas células tumorais. Quais os desafios do projeto? Que impacto poderá o mesmo ter no diagnóstico e tratamento do cancro?

Sim, o desenvolvimento de vacinas e anticorpos direcionados a alterações na glicosilação de proteínas tumorais é uma das nossas principais linhas de investigação. Estas abordagens inovadoras exploram proteínas modificadas com glicanos anómalos como alvos do sistema imunitário, com o objetivo de desencadear respostas dirigidas especificamente contra células malignas. Estando expressos de forma desregulada na superfície tumoral, estes açúcares funcionam como sinais únicos, com potencial terapêutico e diagnóstico e/ou prognóstico. Nós tentamos, no fundo, explorar estas autênticas coordenadas de GPS moleculares para ensinar o sistema imunitário a melhor identificar e atacar especificamente o tumor.

Ao longo da última década, fomos capacitando o laboratório com tecnologias de alta resolução, incluindo plataformas de análise molecular em larga escala baseadas em espectrometria de massa e, mais recentemente, abordagens de inteligência artificial para identificar novos neoantigénios tumorais. É com algum orgulho que digo que integramos um grupo muito restrito de laboratórios que reúnem estas valências num contexto de proximidade ao doente. Paralelamente, desenvolvemos métodos avançados de síntese química e competências na área dos biomateriais, com o objetivo de transladar este conhecimento em soluções concretas de imunoterapia. Somos, por isso, uma infraestrutura com capacidade para cobrir todo o espectro translacional, da descoberta de biomarcadores à formulação de vacinas e à sua avaliação funcional em modelos pré-clínicos.

As nossas vacinas de primeira geração estão atualmente em fase pré-clínica, com ensaios em modelos animais, incluindo combinações com adjuvantes e outras imunoterapias para melhor eficácia terapêutica e profilática. Em paralelo, temos estratégias em fase de patenteamento que visam reforçar a resposta imunitária e dar origem a vacinas de segunda e terceira geração, mais eficazes e abrangentes para vários tumores sólidos. Estamos também a aplicar inteligência artificial para identificar gliconeoantigénios com elevado potencial imunogénico, aumentando a multivalência e a eficácia das vacinas contra diferentes subtipos tumorais. Procuramos, além do impacto terapêutico, integrar os nossos alvos numa lógica de medicina de precisão, explorando o seu valor para estratificação de doentes, seleção terapêutica e deteção precoce.

Tudo isto só é possível graças à existência de equipas verdadeiramente multidisciplinares, que reúnem competências em química, imunologia, biologia do cancro, modelação computacional e bioinformática. Este trabalho decorre numa ligação estreita entre a GlycoMatters, o hospital e academia. Esta articulação tem sido essencial para acelerar a validação pré-clínica e garantir que o conhecimento gerado se transforma em soluções reais para os doentes. O nosso objetivo a médio prazo é conseguir traduzir estas inovações, tanto anticorpos como vacinas, em ferramentas que permitam diagnosticar mais cedo, decidir melhor, proteger de forma mais eficaz e tratar com maior precisão. O objetivo último é, obviamente, contribuir para a melhoria concreta dos cuidados oferecidos aos doentes.

Na sua perspetiva, qual é a importância da criação de uma Rede de Investigação em Saúde? Que impacto poderá o RISE-LA ter no setor da saúde e na investigação ligada a esta temática?

A criação de uma rede como o RISE-LA faz todo o sentido no momento atual. Para mim, representa a oportunidade de, de forma mais estruturada, transformar conhecimento científico em soluções com impacto real na saúde. Na minha opinião, que acredito ser consensual, os grandes desafios nesta área não se resolvem isoladamente. Estes exigem articulação, partilha de conhecimento e construção de sinergias entre universidades, hospitais, centros de investigação e setor privado.  É precisamente isso que o RISE-LA se propõe fazer: integrar esses mundos e promover uma investigação verdadeiramente colaborativa, com aplicação prática.

Nesse sentido, acredito que o RISE encerra um enorme potencial transformador. Tem a capacidade de ser um verdadeiro hub e um catalisador na transferência de conhecimento, na promoção de ligações estratégicas e na garantia de que a ciência chega mais depressa a quem dela precisa. No fundo, trata-se de encurtar a distância entre a bancada do laboratório e a realidade clínica. Permitam-me acrescentar que, num tempo em que a medicina de precisão, os dados em saúde e a digitalização dos cuidados exigem respostas integradas, a criação de uma rede desta natureza não é apenas pertinente, é necessária. Pessoalmente, vejo o RISE-LA como uma oportunidade para continuar o trabalho que tenho vindo a desenvolver, agora num contexto mais alargado e beneficiando da diversidade de competências reunidas. Acredito que será um espaço onde poderei cruzar investigação biomédica, inovação tecnológica e resposta clínica de forma ainda mais coesa. Essa visão está profundamente alinhada com a motivação que levou à criação da GlycoMatters e com o caminho que tenho vindo a seguir no IPO Porto.