Entrevista | Rui Henrique

Entrevista_Rui-Henrique

Investigador do Centro de Investigação do IPO Porto (CI-IPOP@RISE) e Professor Catedrático Convidado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS)

Rui Henrique, investigador do Centro de Investigação do IPO Porto (CI-IPOP@RISE), nasceu e cresceu no Porto, cidade onde, mais tarde, viria a formar-se em Medicina pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS).

Apesar da investigação sempre ter feito parte das suas ambições profissionais, o interesse pela Oncologia, área central do seu trabalho, surgiu apenas durante o estudo de Patologia, enquanto estava a frequentar o Ensino Superior, tendo-se consolidado durante o internato de especialidade em Anatomia Patológica que Rui Henrique realizou no IPO Porto, instituição que acabou por liderar entre 2019 e 2022.

O investigador vê o RISE – Rede de Investigação em Saúde como uma oportunidade para desenvolver a “massa crítica” e afirma que para assegurar o sucesso do Laboratório Associado é necessário garantir diversidade e heterogeneidade na sua investigação, tal como acontece no cancro.

O Rui Henrique é uma figura conhecida da investigação, e em particular na área do cancro, mas pouco se sabe quem foi o Rui Henrique antes de ser docente e investigador. Como foi a sua infância?

Foi uma infância cheia de oportunidades de aprendizagem e de contacto com muitas realidades, o que me proporcionou a oportunidade de experienciar um conjunto de vivências que se tornaram muito importantes para a minha vida, embora nesses momentos não tivesse a consciência disso. Nasci e cresci na cidade do Porto, no seio de uma família de origem humilde (mas honrada, como se diria na época) que acreditava desde há várias gerações que a educação era o caminho para atingir patamares profissionais e sociais mais elevados. No final do século XIX, os meus trisavós, que eram modestos lavradores desta região, colocaram os seus filhos e filhas na escola primária, às suas expensas, pois não havia Ensino Público como hoje o conhecemos, preferindo o investimento no futuro à mera acumulação de um benefício económico circunstancial. Isto é algo notável, pois esta crença no papel transformador da Educação transmitiu-se aos meus bisavós, avós e pais. Eu sou o fruto dessa estratégia: em três gerações, passámos da lavoura à Medicina e à Academia. Nunca esqueço esse passado e essa visão inspiradora, pois significa que temos obrigação de investir no futuro dos que nos seguirão, ainda que não tenhamos a oportunidade de testemunhar o seu sucesso.

Em 1986, o Rui Henrique ingressou na licenciatura em Medicina e terminou este grau de estudos em 1992 como um dos estudantes de referência. A Medicina sempre fez parte dos seus planos?

Pode parecer estranho, mas não. A Medicina só se colocou como opção de formação quando terminei o 12º ano e pensei mais seriamente em escolher o meu futuro profissional. Sempre pensei em dedicar-me à área da Biologia e realizar investigação nessa área (talvez sem saber muito bem o que isso significava). Devo ao meu irmão mais velho a sugestão de realizar o curso de Medicina no ICBAS, que tinha, e ainda tem, uma forte componente biológica. Foi durante o curso que fui progressivamente descobrindo o quanto gostava de Medicina e como me sentiria realizado pessoal e profissionalmente sendo médico. Na verdade, não há muitas profissões nas quais tenhamos o privilégio de tocar tão de perto e tão profundamente a vida das outras pessoas. Para mim, ser médico é mesmo um privilégio, o que acarreta, necessariamente, um conjunto de responsabilidades especiais e diferentes de muitas outras profissões. Não é só uma profissão, mas uma forma de ser e estar na vida e na sociedade na qual nos integramos.

Durante o seu percurso, quando e como surgiu o interesse pela Oncologia?

Acho que o interesse pela Oncologia foi primariamente despertado no estudo da Patologia, enquanto estudante de Medicina. Fiquei impressionado com a visão que o Professor Fernando Oliveira Torres transmitia acerca do cancro. Para ele, tratava-se de um processo biológico enquadrável no âmbito da evolução das espécies, pois o tumor não é uma entidade estranha, mas sim uma adaptação a determinados estímulos internos ou externos que podemos designar como “carcinogénios”. Confesso que na altura não conseguia compreender muito bem este conceito, mas hoje admito que me ajuda a perceber parte da biologia do cancro, tal e qual a tento percecionar. De forma estruturada, o interesse na Oncologia só surgiu com o início do meu internato de especialidade em Anatomia Patológica no IPO Porto. Posso afirmar que, desde então, se tornou o ponto central de toda a minha atividade profissional, académica e científica. E não me arrependo!

Como surgiu a investigação na sua vida?

Tal como referi anteriormente, sempre tive o sonho de ser investigador e comecei a concretizá-lo enquanto era, ainda, estudante de Medicina no ICBAS. No final do 5º ano do curso, tive a sorte de ser convidado para monitor no Laboratório de Histologia e Embriologia, onde iniciei, em 1991, a minha atividade docente e científica, sob a orientação do Professor Rogério Monteiro e do Professor Eduardo Rocha. Comecei por trabalhar na linha de investigação que então desenvolviam, estando esta relacionada com a caracterização do processo de envelhecimento das células nervosas do cerebelo, utilizando técnicas de morfometria. Foram este contacto com a Histologia e a investigação em morfologia celular que me fizeram optar por realizar a especialidade de Anatomia Patológica, embora durante todo o curso de Medicina sempre pensasse que exerceria uma especialidade clínica. Claro que essa opção conduziu a que, sendo realizada no IPO Porto, viesse a desenvolver os meus interesses científicos na área da Oncologia. No entanto, essa fase inicial foi de extrema importância, pois permitiu-me adquirir as competências e conhecimentos básicos e fundamentais relativos ao método científico e sua prática.

Entre junho de 2019 e outubro de 2022, o Rui Henrique foi Presidente do Conselho de Administração do IPO Porto. Que desafios surgem ao liderar uma instituição dedicada à prestação de cuidados de saúde centrados no cancro?

Os desafios dessa experiência podem resumir-se, de forma muito simples, num único: como cumprir as expetativas dos doentes e dos profissionais com os meios que nos são disponibilizados. Se este desafio é complexo numa situação “normal”, tornou-se avassalador na situação de pandemia de COVID-19. É uma experiência difícil de explicar para quem não viveu esses momentos ao nível da gestão de uma unidade hospitalar. Foi, apesar de tudo, uma experiência de aprendizagem muito importante, não apenas sobre os desafios da gestão, mas, sobretudo, sobre a natureza e a condição humana. Reconheço que na minha visão da vida há um “antes” e um “depois” dessa passagem pelas funções no Conselho de Administração.

O Centro de Investigação do IPO-Porto é uma das unidades nacionais de investigação de referência na área da oncologia. Na sua visão, de que forma é que este centro contribui com o desenvolvimento da Estratégia Nacional e o Plano Europeu de Luta Contra o Cancro?

Embora o nosso Centro de Investigação esteja a celebrar as duas décadas de existência formal, o IPO Porto sempre teve uma atividade de investigação estreitamente associada à atividade assistencial em Oncologia. A organização desta atividade no âmbito do Centro de Investigação permitiu um crescimento e, sobretudo, um impacto sem precedentes na qualidade e quantidade de Ciência que produzimos. Ora, como instituição oncológica líder em Portugal e uma das maiores a nível europeu, o IPO Porto tem necessariamente de alinhar a sua estratégia global, e não apenas de investigação, com a estratégia nacional e com a estratégia europeia no combate ao cancro. No que diz respeito à investigação, isso é muito evidente quando consideramos os eixos fundamentais ao longo dos quais a investigação científica se desenvolve no IPO Porto, designadamente o desenvolvimento e validação de novos biomarcadores com valor na deteção, diagnóstico, prognóstico, monitorização e predição de resposta à terapêutica, identificação de novos alvos moleculares com relevância terapêutica para serem testados em ensaios clínicos, desenvolvimento de ferramentas inovadoras para análise de imagem médica, bioinformática e resultados clínicos. Acho difícil maior alinhamento com as estratégias nacionais e internacionais. Designamos tudo isto como “investigação orientada clinicamente”, uma expressão com a qual queremos abranger tudo o que se convencionou chamar “investigação clínica”, expressão que, infelizmente, é cada vez mais usada de uma forma (erradamente) restritiva para significar “testar novos fármacos ou novas indicações terapêuticas em doentes”.

Na sua visão, quais são os principais pontos positivos e negativos associados à liderança de projetos de investigação numa área considerada como o maior desafio societal da União Europeia?

A principal satisfação é verificar que, nas últimas duas décadas, em especial, a investigação científica conseguiu melhorar de forma considerável a qualidade e quantidade de vida dos doentes com cancro. O nosso contributo individual é muito modesto, mas é graças a muitos contributos de muitos investigadores que hoje conseguimos dar mais esperança aos nossos doentes. A maior insatisfação é não conseguir ter respostas mais eficazes e mais impactantes num tempo mais reduzido, apesar de um investimento que tem sido bastante considerável. Atrevo-me a dizer que se é necessário mais investimento/financiamento, também é necessária cada vez mais organização e estruturação. Eu sei que um dos maiores princípios da ciência é a liberdade de investigar, mas isso requer estrutura e organização para ser eficaz. É algo que precisamos de trabalhar ainda mais afincadamente.

Na sua perspetiva, qual a importância da criação de uma Rede de Investigação em Saúde? Que impacto poderá ter uma iniciativa como o Laboratório Associado RISE na melhoria dos processos de investigação ligados à oncologia?

As frases com que terminei a minha resposta à pergunta anterior tinham o propósito de “dar o mote” para esta questão. Quando o Professor Altamiro da Costa Pereira nos abordou para constituir o Laboratório Associado RISE, vi nessa proposta o concretizar da necessidade de mais organização e da construção da “massa crítica” necessária para sermos cientificamente eficazes. Como disse anteriormente, ser cientificamente eficaz na nossa área não é (apenas) conseguir muito financiamento competitivo e publicar muitos artigos científicos, mas sim ser capaz de devolver à sociedade esse investimento através da melhoria da qualidade e quantidade de vida dos doentes. O RISE surgiu como uma experiência inovadora na área da saúde, o que levanta sempre muitos desafios para a sua concretização. É necessária muita diplomacia e capacidade de diálogo para conseguir acomodar visões distintas e congregá-las para um objetivo comum, sem que ninguém perca a sua individualidade. Neste ponto temos, também, que aprender com o cancro: o segredo do sucesso é a diversidade e a heterogeneidade.